Fernando Miramez de
Olivídeo era filho de casal nobre do norte da Espanha. Sua mãe nascera na
França e seu pai era de origem portuguesa. Assim, em suas veias misturava-se o
sangue de duas nobrezas, aquecido pelo clima da Espanha, seu berço natal.
Moço inteligente e
estudioso aprofundava-se na história dos povos e nações da Terra. Deteve-se com
interesse na descoberta das Américas, em cujo evento destacaram-se Cristóvão Colombo
e Pedro Álvares Cabral, apaixonando-se ainda que sem conhecê-los fisicamente,
pelas Terras de Santa Cruz. Tal era o seu interesse por elas, que por várias
vezes visualizava-se desembarcando em portos da terra que já sentia ser
abençoada.
Tinha notícias dos
silvícolas, habitantes dessa nação nova, e da escravidão em desenvolvimento,
imposta pelos estrangeiros conquistadores, não aceita pelos primeiros, que se
revoltavam.
Acompanhou
interessadamente a implantação do trabalho escravo do homem de raça negra,
levado à força do continente africano, que, por sua característica passiva, aceitava
o grilhão e o açoite, servindo aos interesses daqueles que avidamente se apossaram
das terras.
Colocava-se sempre, em
pensamento, no meio do povo humilde, regozijando-se com a bravura dos índios,
embora no fundo soubesse que acabariam dominados pelos estrangeiros, que dispunham
dos meios para submetê-los. Contudo, nesta luta onde os fracos pediam socorro
aos homens de bem, os céus jamais ficariam em silêncio, nem deixariam sem
resposta os clamores dos oprimidos, apesar dos carmas coletivos dos povos e
nações.
Fernando era íntimo de
Filipe IV, rei de Espanha, que conhecia seus princípios de integridade e os
dotes de elevada moral de que era portador. Para o rei, Fernando tinha algumas
deficiências que necessitavam ser corrigidas: era avesso às guerras, repudiava
a violência e propugnava pelo direito dos povos e, principalmente, dos indivíduos.
Como tinha planos
relativos a ele, durante uma entrevista que lhe concedera, em caráter íntimo,
Filipe dá início à execução dos mesmos, falando-lhe convincente:
"Caro amigo, conheço
vossos dotes e vos considero pessoa grata da Família Real, que conta com eles
para defender seus interesses, bem como os de nossa Espanha. Reconheço em vós
predicados e valores que se aproximam da perfeição, contudo, compete a mim, por
quem sois, recomendar-vos que junto com a virtude, deveis cultivar a
bravura e a tenacidade; o orgulho pela nossa nobreza e pela tradição e
honra da Espanha; a luta pelas nossas posses de além-mar, aumentando nossas
riquezas e o nosso poder. Nossa nação tem a gloriosa destinação de dominar o
mundo. Deus está conosco e Cristo a escolheu como seu trono para, através dela,
reinar sobre tudo.
Sabemos que Portugal
começa a se levantar de novo e a sua ganância por ouro, prata e pedras
preciosas é destemida. Entende que ninguém tem direitos sobre as terras que,
por acaso, um de seus navegadores descobriu. A Escola de Sagres somente prepara
os homens, enviando-os em expedição por todos os quadrantes, abrindo caminhos
marítimos em busca de poder e riquezas, esquecendo-se de suas obrigações para
com Deus, Cristo e a Santa Madre Igreja. Por isso, resolvi constituir-vos meu
representante" disse o rei entre dois goles de vinho, dando à sua fala um
tom misto de intimidade e cumplicidade.
"Ide, pois, meu
filho, para a terra adornada pela cruz formada por cintilantes estrelas. Sereis
os ouvidos do Rei e a boca de Espanha. Sereis dotado das instruções do que
devereis fazer, bem como das credenciais que vos darão poderes de Chefe de Estado.
Depois de tudo consumado, tereis a vossa glória: sereis imortalizado pela história
e tereis o reconhecimento de toda a Espanha. Em nome dela, eu vos abençoo."
Sorrindo, Filipe sorveu
mais um gole do puro vinho, satisfeito consigo mesmo, pela maneira com que
convencera a Fernando.
Miramez, a tudo ouvia
pacientemente, atento às intenções ocultas de Filipe, que ele bem identificava.
Contrariava-o conviver com interesses da ordem que ele tanto subestimava, mas
sua intuição o prevenia da oportunidade de realizar as suas íntimas aspirações
e anseios, que eram conhecer e viver nas Terras de Santa Cruz, a fim de
participar de sua preparação como Pátria do Evangelho.
Enquanto o rei sorvia o
saboroso vinho, seu cérebro funcionava celeremente, esforçando-se para não
deixar transparecer suas reais e elevadas intenções.
O íntimo do seu ser era
de total alegria, quando respondeu ao monarca:
- "Majestade, em
vossas mãos estão às rédeas deste vigoroso corcel que é a Espanha. Que Deus vos
abençoe para que conduzais esta nação que tanto amamos nas melhores condições
de trabalho e honestidade. Vamos obedecer à vossa real vontade, para
alcançarmos a vitória. Conheço vosso ideal em relação à Espanha e rogo a Deus
para vos ajudar a formar nobres ideias em benefício do povo."
Ia prosseguir, mas notou
que o soberano já estava ficando confuso pelo que ouviu e pela quantidade de
vinho ingerido. Por isso, apenas pensou, de si para consigo: "Sei
perfeitamente o que Vossa Majestade deseja para si mesma." E, abrandando
mais a voz, disse para terminar: "Eu vos agradeço de coração e serei
eternamente grato pela oportunidade que ora me ofereceis de conhecer novas
terras, as quais já admiro mesmo antes de ve-las. Garanto a Vossa Majestade que
vamos fazer lá muitas coisas agradáveis a Deus." E curvando-se respeitosamente
ante o soberano que o despedira entusiasticamente, retirou-se.
O rei passaria uma noite
mal dormida, rememorando as palavras de Fernando, sem conseguir entender o seu
sábio e elevado sentido, sem, contudo, deixar de confiar no nobre súdito. Além
disso, tinha, interesse em sua saída da Espanha. Miramez, porém, naquela noite
inesquecível em que viu começar a se materializar sua mais íntima aspiração,
teve um sono tranquilo, fazendo uma viagem astral, parcialmente consciente, às
terras aonde em breve haveria de aportar. Acordara no dia seguinte cantarolando,
envolvido por estranha alegria, como só ia acontecer com aqueles que pensam,
vivem e agem em prol da humanidade.
Assim, em um dia do ano
de 1649, em que reinava em Roma Inocêncio X, ou João Batista Panfil,
desembarcava no litoral do Brasil, secretamente, na condição de turista, o
enviado do rei da Espanha. Amável e convincente, já no barco que o transportava
para a praia, relacionara-se com os remadores e escravos.
Desceu Miramez pela
primeira vez em corpo físico, nas terras com as quais sempre sonhara. Como que
agindo segundo os ditames do coração, descalçou as botas e pisou a terra, sentindo-a
sob seus pés, como se identificando com ela, recebendo-lhe o calor. Ao mesmo
tempo, lágrimas que marejavam seus olhos caíam no solo generoso que as recebia,
umedecendo-se com elas, ocorrendo desse modo uma permuta de valores, cujos resultados
benéficos seriam constatados através dos tempos.
Acontecimento notável em
sua chegada, foi o fato de vários índios que se encontravam na praia virem ao
seu encontro como que para recepcioná-lo, ao tempo em que o feiticeiro da tribo
a ele se dirigia e, apontando para o seu lado direito, exclamava: 'Babagi!
Babagi!'
Babagi era uma divindade
indígena, tida pelos estranhos como uma lenda, que curava os enfermos através
dos curandeiros das tribos. Era, na realidade, uma entidade espiritual e vinha
ao lado de Fernando, ajudando-o a andar na areia onde seus pés deslizavam.
Este, logo sentiu-se cercado pelos novos amigos, que nele sentiam condições de
proporcionar alívio aos sofrimentos e perseguições por que vinham passando,
ante o domínio dos invasores estrangeiros.
Apesar de ainda não falar
seu idioma, entendia-os pelos gestos e por intuição, o que denotava a afinidade
existente. Assim, tendo se misturado com os nativos, ninguém suspeitava de sua
condição de súdito espanhol a serviço secreto do rei. Em curto espaço de tempo,
Fernando já assimilara os diversos dialetos indígenas e africanos,
movimentando-se com desenvoltura entre os humildes. O clima da região influiu
em seus traços e poucos conseguiam distingui-lo do povo local.
Em 1653, desceu no Maranhão
onde se encontrava Fernando, o temido político e pregador, representante de
Roma e de Portugal - Pe. Antonio Vieira - que em seus famosos sermões acionava
forças desconhecidas e dominava com facilidade aqueles que o ouviam. Era esse
homem que Filipe IV, rei da Espanha, temia retornasse ao Brasil.
Em cumprimento à missão
de que estava incumbido, comunicava ao seu soberano os acontecimentos que
poderiam ser benéficos ao Brasil, omitindo notícias que poderiam prejudicar os
povos que nele já lançavam raízes.
Com o passar do tempo e
por impositivo do progresso, tudo foi mudando, e assim acontecia com os
conceitos e interesses. Isso agradava sobremodo ao nosso personagem, que já
tinha nos índios e nos escravos a sua própria família.
Certa noite, quando contemplava
as estrelas, sobreveio forte lembrança da pátria distante, onde dispunha de
inúmeros e valiosos bens, entre propriedades e terras abundantes. Enquanto meditava
se deveria regressar à Espanha, sentiu uma voz suave, como se nascesse dentro
de sua consciência, recomendando-lhe: "Vai, vende todos os teus bens,
distribui-os entre os pobres e terás um tesouro no céu: depois, vem e
segue-me." Surpreso, sentia que aquela voz era sua conhecida: mas, de
onde? Parecia-lhe que já a escutara antes, mas, quando? Achava-se perdido no
oceano dos séculos. Contudo, a voz fez-se ouvir novamente. "Fernando,"
- disse a voz, "podes vender todas as tuas posses na Espanha e distribuir
o dinheiro entre os necessitados de tua pátria. Os daqui, necessitando passar
pelos processos renovadores, precisam mais da tua riqueza mental, do resultado
de tuas mãos operosas, do tesouro armazenado em teu coração e da tua presença
confortadora."
Miramez, então, resolveu
enviar procuração a amigos de sua confiança, autorizando-os a dispor dos seus
bens e distribuir o resultado entre os carentes e sofredores da Península
Ibérica.
Não chegou a ficar
sabendo o que foi feito de suas riquezas materiais, porém, passou a viver um
estado de consciência tranquila, única riqueza que acompanha seus portadores
eternidade a fora.
Após aquelas
providências, sua vida em muito mudou. Aquele homem culto e fascinante foi
descoberto pelos catequizadores entre os índios e os escravos africanos, como
pastor de dois rebanhos. Alguns índios e negros não se davam bem, hostilizando-se
mutuamente. Trabalhando arduamente pela aproximação e convivências das duas
raças, em pouco tempo seus esforços eram coroados de êxito, quando índios e
negros festejavam juntos suas tradições, unidos pelos laços da amizade e do
sofrimento.
Miramez, então, passou a
frequentar o grupo de catequizadores por encontrar ali campo propício à prática
dos seus ideais. Como resultado de seu trabalho e esforço conjunto, mais tarde
foi promulgada, em 1680, a lei de proteção aos índios.
Antes de terminar este
relato, procurando mostrar como ocorreu a chegada de Miramez ao Brasil e a sua
participação junto aos espíritos simples e sofredores que prepararam o campo
que favoreceria a implantação do Evangelho nas terras do Cruzeiro, queremos
relatar um fato ocorrido com ele em um pequeno arraial destinado a receber os
velhos escravos, onde passavam os últimos dias de suas vidas.
Junto com jovens
escravos, que vez por outra recebiam permissão de seus senhores para visitarem
seus pais e avós, Miramez, certa manhã, buscou os casebres para rever seus
tutelados, levando-lhes o conforto de sua palavra fraterna e confortadora.
Todos o tinham como o "Pai Branco", "Filho do Sol" ou
"Homem Que Veio da Luz".
Ao levantar a cabeça,
fixando o olhar nas nuvens, como costumava fazer, punha o coração ao alto e a
mente em sintonia com o Todo Poderoso. O ambiente se asserenava, envolvendo em
suaves vibrações aqueles que o cercavam.
Ao regressar, passeando à
beira de murmurante regato de águas cristalinas, acompanhado, como de costume,
por uma velha preta, ao passar beirando um barranco onde a vegetação se
adensava, foi atacado por perigosa e venenosa jararacuçu, cuja picada comumente
resulta em morte, sendo atingido na perna, abaixo do joelho.
A preta velha viu o
réptil dando o bote e a água do riacho tingir-se de sangue. Saiu a correr para
o povoado em busca da velha benzedeira Pari, que nos seus noventa anos a muitos
salvara pelos seus dons de curar várias enfermidades. Ao ser localizada e
informada do ocorrido, a velha Pari, já acostumada a essas emergências, apanhou
alguns apetrechos e saiu pressurosa em socorro ao Pai Branco.
Mas Miramez, já com
muitas experiências vividas entre índios e negros, também tomara seus
cuidados: lembrando-se de um cordão com vários nós intercalados que
carregava em seu bornal, tomou-o e com ele amarrou a perna ofendida, na altura
do joelho, impedindo a circulação. Tal cordão ele recebera de sua mãe querida,
nos minutos finais de sua vida na terra, explicando-lhe sua origem. Pertencera
a um bondoso pároco português que se dedicava à cura. "Meu filho", disse
ela nos seus últimos momentos. "quando o velho padre me passou este cordão,
de seus dedos desprendiam-se pequenos raios de luz que eram absorvidos pelos
nós do cordão. Carreguei-o comigo por vários anos e muitas vezes utilizei-o em
favor do alívio das pessoas. Agora, passo-o a você, pra que seja usado em seus
momentos de dificuldade e de aflições." Abençoando-o, desfalecera e regressara
à pátria espiritual.
A negra Pari, chegando,
fez com que Miramez se assentasse num lajedo, levantasse os olhos e, como se
conversasse com alguém invisível, pronunciava palavras ininteligíveis. Em dado
momento, colocou os lábios sobre o ferimento e sugou por várias vezes o sangue
já enegrecido, cuspindo-o para o lado. A seguir, colocou algumas ervas na boca,
mastigou-as e tornou a cuspir, lavando-a nas águas do riacho. Torna a repetir a
operação, colocando as ervas maceradas sobre o ferimento, que logo parou de
doer.
Com um suspiro profundo e
se recompondo, a boa escrava retirou o cordão benfazejo da perna de Miramez,
ajudou-o a caminhar em demanda a seu casebre, onde o fez ingerir uma beberagem.
Antes disso, a velha Pari, acalmando a revolta dos velhos escravos, não deixou
que matassem a cobra; foi sozinha ao local, gritou com o perigoso réptil,
expulsou-o e ordenou que não voltasse mais ali. Miramez sentia cada vez mais
gratidão e amor por aquela gente simples, filha de Deus, que, dentro do possível,
tudo fazia em seu benefício.
E naquela noite chorou de
reconhecimento, orando ao Criador em benefício daquela gente simples e
sofredora.
PERFIL DE MIRAMEZ
O nosso diretor
espiritual era, quando encarnado, alto, de porte esbelto e nobre, cabelos encaracolados
da cor do ouro velho, os quais trazia amarrados para trás. Tinha testa
ampla, denotando inteligência, tez bronzeada pelo tórrido sol do norte, olhos
verdes que lembravam os canaviais; os dois incisivos da frente eram
ligeiramente separados.
Seus lábios eram pouco
salientes e o nariz, grande e levemente achatado na ponta, não chegava a
tirar-lhe a formosura do rosto.
Apesar do constante
sorriso nos lábios, seu semblante era grave; algumas rugas já demonstravam as
consequências do desconforto físico e dos trabalhos em favor dos humildes.
Sua morte ocorreu num
quadro de elevada suavidade. Os negros e os índios catequizados formavam
extensa fila para beijar-lhe as mãos, que tanto os ajudaram a viver. Enquanto
esteve lúcido, Miramez abençoava-os, um por um.
Nos momentos derradeiros,
Fernando Miramez de Olivídeo percebeu a presença da mãe extremosa, bem como de
sublimada entidade que ele prefere não identificar, por julgar não merecer
tamanha honra.
Com lágrimas nos olhos,
Miramez desprendeu-se do vaso físico e, já fora dele, chorou de felicidade e
agradecimento, por ter ingressado no Brasil pelas portas do amor e da caridade,
que lhe foram abertas por Jesus.
pelo Espírito Miramez,
psicografia de João Nunes Maia
Obra: Horizontes da Mente
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