quarta-feira, 30 de outubro de 2013

A Possessão, segundo Kardec


Há possessos? Existe a possibilidade de dois Espíritos coabitarem num mesmo corpo? O mergulho cronológico nas obras da Doutrina Espírita, nos leva ao seu berço, “O Livro dos Espíritos”: (1)

1857

Perg. 473–Pode um Espírito tomar temporariamente o invólucro corporal de uma pessoa viva, isto é introduzir-se num corpo animado e obrar em lugar do outro que se acha encarnado nesse corpo?

O Espírito não entra em um corpo como entrais numa casa. Identifica-se com um Espírito encarnado, cujos defeitos e qualidades sejam os mesmos que os seus, a fim de obrar conjuntamente com ele. Mas, o encarnado é sempre quem atua, conforme quer, sobre a matéria de que se acha revestido. Um Espírito não pode substituir-se ao que está encarnado, por isso que este terá que permanecer ligado ao seu corpo até ao termo fixado para sua existência material.

Kardec retira suas conclusões, prepara e formula a pergunta seguinte, e os Espíritos respondem: (1)

Perg. 474_ Desde que não há possessão propriamente dita, isto é coabitação de dois Espíritos no mesmo corpo, pode a alma ficar na dependência de outro Espírito, de modo a se achar subjugada ou obsedada ao ponto de sua vontade vir a achar-se, de certa maneira, paralisada?

Sem dúvida e são esses os verdadeiros possessos. Mas é preciso saibais que essa denominação não se efetua nunca sem que aquele que sofre o consinta, que por sua fraqueza, quer por deseja-la. Muitos epilépticos ou loucos que mais necessitam de médico que de exorcismos têm sido tomados por possessos.

Os Espíritos aí fazem uma nítida distinção entre os verdadeiros e os falsos possessos.

Os verdadeiros são os subjugados até ao ponto de sua vontade vir a achar-se, de certa maneira, paralisada; os falsos são os que não correspondem aos casos de obsessão, necessitando tratamento médico.

Comenta ainda Kardec, após a resposta dos Espíritos:

O termo possesso só se deve admitir como exprimindo a dependência absoluta em que uma alma pode achar-se a Espíritos imperfeitos que a subjuguem.

1858

Se havia alguma dúvida sobre a opinião do Codificador até aquele momento, ele a desfaz no texto da Revista Espírita, por ele dirigida: (2)

Antigamente dava-se o nome de possessão ao império exercido pelos maus Espíritos, quando sua influência ia até a aberração das faculdades. Mas a ignorância e os preconceitos, muitas vezes, tomaram como possessão, aquilo que não passava de um estado patológico. Para nós, a possessão seria sinônimo de subjugação. Não adotamos esse termo (...) porque ele implica igualmente a ideia de tomada de posse do corpo pelo Espírito estranho, uma espécie de coabitação ao passo que existe apenas uma ligação. O vocábulo subjugação da uma ideia perfeita. Assim, para nós, não há possessos, no sentido vulgar da palavra; há simplesmente obsedados, subjugados e fascinados.

Fica bastante claro que, para ele, até aqui, não existia possessão. 

1861

O texto acima é parecido com o exarado no “O Livro dos Médiuns” (3), com uma diferença significativa no parágrafo, qual seja, a troca da palavra “ligação”, por “constrangimento”. 

1862

Momentaneamente, temos a impressão de que estariam respondidas, as indagações formuladas na inicial, mas, apesar dessas considerações, o termo possessão reaparece na Revista Espírita: (4)

Ninguém ignora que quando o Cristo, nosso muito amado mestre, encarnou-se na Judéia, sob os traços do carpinteiro Jesus, aquela região havia sido invadida por legiões de maus Espíritos que, pela possessão, como hoje, se apoderavam das classes sociais mais ignorantes, dos Espíritos encarnados mais fracos e menos adiantados (...) é preciso lembrar que os cientistas, os médicos do século de Augusto, trataram, conforme os processos hipocráticos, os infelizes possessos da Palestina e que toda sua ciência esbarrou ante esse poder desconhecido. (Erasto)

Na mesma revista e no mesmo ano, (5) Kardec, nos “Estudos sobre os Possessos de Morzine”, acrescenta a seguinte consideração:

O paroxismo da subjugação é geralmente chamado de possessão. 

1863

A retomada do termo tinha uma razão, e Kardec é bem incisivo na sua opinião na Revista Espírita, sobre os mesmos Possessos de Morzine, que certamente o impressionaram e influíram na mudança de sua conceituação sobre possessão, e valeram doze citações no índice remissivo da Revista Espírita (1862, 63, 64, 65 e 68), além de outros estudos, na mesma revista, como, por exemplo, quando analisa “Um Caso de Possessão”. (6) (7) Senão vejamos:

Temos dito que não havia possessos, no sentido vulgar do vocábulo, mas subjugados. Voltamos a esta asserção absoluta, porque agora nos é demostrado, que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito errante a um encarnado. (...) Não vendo senão o efeito, e não remontando à causa, eis porque todos os obsedados, subjugados e possessos passam por loucos (...). Eis um primeiro fato, que o prova, e apresenta o fenômeno em toda a sua simplicidade. (...)

(O Sr. Charles) Declarou que, querendo conversar com seu velho amigo, aproveitava o momento em que o Espírito da Sra. A..., a sonâmbula, estava afastado do corpo, para tomar-lhe o lugar. (....). Eis algumas de suas respostas.

- Já que tomastes posse do corpo da Sra.A... Poderíeis nele ficar?

- Não; mas vontade não me falta.

- Por que não podeis?

- Porque seu Espírito está sempre ligado ao seu corpo. Ah! Se eu pudesse romper esse laço eu pregaria uma peça.

- Que faz durante este tempo o Espírito da Sra. A...

- Está aqui ao meu lado; olha-me e ri, vendo-me em suas vestes.

O Sr. Charles (...) era pouco adiantado como Espírito, mas naturalmente bom e benevolente. Apoderando-se do corpo da Sra. A... Não tinha qualquer intenção má; assim aquela Senhora nada sofria com a situação, a que se prestava de boa vontade.

Aqui a possessão é evidente e ressalta ainda melhor dos detalhes, que seria longo enumerar. Mas é uma possessão inocente e sem inconvenientes.

Na mesma página, no entanto, Kardec descreve um caso de possessão da Sra. Júlia, agora dirigida por um Espírito malévolo e mal intencionado.

Há cerca de seis meses tornou-se presa de crises de um caráter estranho, que sempre corriam no estado sonambúlico, que, de certo modo, se tornara seu estado normal. Torcia-se, rolava pelo chão, como se se debatesse, em luta com alguém que a quisesse estrangular e, com efeito, apresentava todos os sintomas de estrangulamento.

Acabava vencendo esse ser fantástico, tomava-o pelos cabelos, derrubava-o a sopapos, com injúrias e imprecações, apostrofando-o incessantemente com o nome de Fredegunda, infame regente, rainha impudica, criatura vil e manchada por todos os crimes, etc. Pisoteava como se acalcasse aos pés com raiva, arrancando-lhe as vestes. Coisa bizarra, tomando-se ela própria por Fredegunda, dando em si própria redobrados golpes nos braços, no peito, no rosto, dizendo: “Toma! Toma! É bastante,  infame Fredegunda? Queres me sufocar, mas não o conseguirás; queres meter-se em minha caixa, mas eu te expulsarei.” Minha caixa era o termo que se servia para designar o próprio corpo. (...)

Um dia para livrar-se de sua adversária, tomou de uma faca e vibrou contra si mesma, mas foi socorrida a tempo de evitar-se um acidente.

Vemos aí, a luta de dois Espíritos pelo mesmo corpo.

Este Espírito, Fredegunda, foi posteriormente evocado em sessões mediúnicas e convertido ao bem. (8)

Mas, voltando aos Possessos de Morzine, (9) diz Kardec referindo-se ao perispírito:

Pela natureza fluídica e expansiva do perispírito, o Espírito atinge o indivíduo sobre o qual quer agir, rodeia-o, envolve-o, penetra-o e o magnetiza. (...) Como se vê, isto é inteiramente independente da faculdade mediúnica (...)

Estes últimos, sobretudo (os possessos do tempo de Cristo), apresentam notável analogia com os de Morzine.

Na mesma revista e no mesmo ano, selecionamos e pinçamos, para dimensionarmos a extensão daquela possessão coletiva: (10)

Os primeiros casos da epidemia de Morzine se declararam em março de 1857(...) e em 1861 atingiram o máximo de 120. (...)

(...) o caráter dominante destes momentos terríveis é o ódio a Deus e a tudo quanto a ele se refere.

1864

Ainda sobre a possessão da Sra. Júlia (12), refere-se Kardec na Rev. Espírita, (11):

No artigo anterior (1863) descrevemos a triste situação dessa moça e as circunstâncias que provavam uma verdadeira possessão.

O grau de intensidade das possessões e sua reatividade a tentativa de exorcização, vai bem descrita na Revista Espírita: (12)

“Desde que o bispo pisou em terras de Morzine”, diz uma testemunha ocular, “sentindo que ele se aproximava, os possessos foram tomados de convulsões as mais violentas; e, (...) soltavam gritos e urros, que nada tinham de humano”. (...)

As possessas, cerca de setenta, com um único rapaz, juravam, rugiam, saltavam em todos os sentidos. (...) A última resistiu a todos os esforços; vencido de fadiga e de emoção, ele (o bispo) teve que renunciar a lhe impor as mãos; saiu da igreja trêmulo, desequilibrado, as pernas cheias de contusões recebidas das possessas, enquanto estas se agitavam sob suas benções.” (...)

Encontramos no “Evangelho, Segundo o Espiritismo, (13) a seguinte referência sobre possessão e reforma íntima”:

(...) para isenta-lo da obsessão, é preciso fortificar a alma, pelo que necessário se torna que o obsidiado trabalhe pela sua própria melhoria, o que as mais das vezes basta para se livrar do obsessor, sem recorrer a terceiros. O auxílio destes se faz indispensável, quando a obsessão degenera em subjugação e em possessão, porque aí não raro o paciente perde a vontade e o livre arbítrio.

No mesmo livro, (14), há considerações sobre as causas da possessão:

O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao seu corpo e assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar, ferir nos seus interesses, ou nas suas mais caras afeições.

Nesse fato reside a causa da maioria dos casos de obsessão, sobretudo dos que apresentam certa gravidade, quais os de subjugação e possessão. 

1867

Ainda na Revista Espírita, (15) encontramos informações de como é esta perda do livre arbítrio e como impedi-la:

Objetar-me-eis, talvez, que nos casos de obsessão, de possessão, o aniquilamento do livre arbítrio parece ser completo. Haveria muito a dizer sobre esta questão porque a ação aniquiladora se faz mais sobre as forças vitais materiais do que sobre o Espírito, que pode achar-se paralisado, dominado e impotente para resistir, mas cujo pensamento jamais é aniquilado, como foi possível constatar em muitas ocasiões. (...)

Procedeis em relação aos Espíritos obsessores ou inferiores que desejais moralizar (...) algumas vezes conscientemente, quando estabeleceis, em torno deles uma toalha fluídica, que eles não podem penetrar sem vossa permissão, e agis sobre eles pela força moral, que não é outra coisa senão uma ação magnética quintessenciada. 

1868 

Na “A Gênese”, (16) Kardec disserta sobre domicílio Espiritual, típico caso de coabitação, ou como agora quer Hermínio Miranda, “condomínio espiritual, com síndico e convenção.”

Na possessão, em vez de agir exteriormente, o Espírito atuante se substitui, por assim dizer, ao Espírito encarnado, tomando-lhe o corpo por domicílio, sem que este, no entanto, seja abandonado por seu dono, pois que isso só se pode dar pela morte. A possessão, conseguintemente, é sempre temporária e intermitente, porque um Espírito desencarnado não pode tomar definitivamente o lugar de um encarnado, pela razão que a união molecular do perispírito e do corpo só se pode operar no momento da concepção.

De posse momentânea do corpo do encarnado, o Espírito serve-se dele como se seu próprio fora: fala pela sua boca, vê pelos seus olhos, opera com seus braços conforme o faria se estivesse vivo. Não é como na mediunidade falante, em que o Espírito encarnado fala transmitindo pensamento de um desencarnado; no caso da possessão é mesmo o último que fala e obra (...)

Na obsessão há sempre um Espírito malfeitor. Na possessão pode tratar-se de um Espírito bom que queira falar e que, para causar maior impressão nos ouvintes, toma do corpo de um encarnado, que voluntariamente lho empresta, como emprestaria seu fato a outro encarnado.

Quando é mau o Espírito possessor, (...) ele não toma moderadamente o corpo do encarnado, arrebata-o (...)

Seguindo ainda, no mesmo livro:

Parece que ao tempo de Jesus, eram em grande número, na Judéia, os obsidiados e os possessos (...) Sem dúvida, os Espíritos maus haviam invadido aquele país e causado uma epidemia de possessões. (17)


Com as curas, as libertações dos possessos figuram entre os mais numerosos atos de Jesus. (...) “Se eu expulso os demônios pelo Espírito de Deus, é que o reino de Deus veio até vós.” (S. Mateus, cap. XII, 22 e 23) (18)

Deduzimos com base no exposto que, para que exista possessão, é preciso que o Espírito obsessor identifique-se com o Espírito encarnado; aquele atinge o indivíduo sobre o qual quer agir, rodeia-o, envolve-o, penetra-o e o magnetiza; o aniquilamento do livre arbítrio parece ser completo, porque a ação aniquiladora se faz mais sobre as forças vitais materiais do que sobre o Espírito, que pode achar-se paralisado, dominado e impotente para resistir, mas cujo pensamento jamais é aniquilado, pois o encarnado é que atua conforme quer, sobre a matéria de que se acha revestido e, portanto aquela dominação não se efetua nunca sem que aquele que a sofre o consinta, quer por sua fraqueza, quer por deseja-la; em vez de agir exteriormente ao Espírito encarnado, toma-lhe o corpo por domicílio, sem que este, no entanto, seja abandonado por seu dono, pois isso só se pode dar pela morte, por isso, a possessão é sempre momentânea, temporária e intermitente. Para se libertar da possessão, é preciso fortificar a alma, pelo que necessário se torna que o obsediado trabalhe para sua própria melhoria, estabelecendo em torno de si, uma toalha fluídica, que eles não possam penetrar sem sua permissão, agindo sobre eles pela força moral, por uma ação magnética quintessenciada. Na possessão isto só é possível, com a ajuda indispensável de terceiros.

Portanto, respondendo às indagações iniciais deste trabalho, podemos dizer que Kardec, analisou todas as facetas e prismas da possessão e concluiu que; existe possessão e também coabitação.

Uma obra, como a da Codificação Espírita, é indivisível e, portanto deve ser analisada como um todo, jamais devendo ser fragmentada ou dividida, na análise de seu conteúdo; existem vários temas, nas obras básicas (O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo O Espiritismo, A Gênese, O Céu e o Inferno) e na Revista Espírita, em que as verdades foram estudadas à luz dos conhecimentos adquiridos no dia a dia e suas opiniões, às vezes alteradas, sem que correspondessem a uma mudança de ideia, mas sim, a uma evolução de verdade em verdade, degrau a degrau na escada ascensional do conhecimento, como convém a um cientista sábio, astuto, inteligente, honesto e antes de tudo, humilde, coisa rara, aliás.

A fé raciocinada sobre a égide desta humildade, aconselhada e praticada pelo mestre lionês, levou-o na busca incessante da verdade, que sempre caracterizou suas ações, a correta elucidação conceptual de possessão, incitando-nos também a libertarmo-nos de duas outras; a dos dogmas e a do fanatismo.

Tenhamos igual têmpera e nos deixemos contaminar pela sua lição e pelo seu exemplo; a lição inclina, o exemplo arrasta.



Fernando A. Moreira
Fonte: GEAL 

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