domingo, 15 de dezembro de 2013

SOFRIMENTO DE UM SUICIDA



Nota do compilador: Abaixo, uma  pequena mostra do sofrimento de um suicida no Plano Espiritual. Várias obras ditadas pelos espíritos nos dão conta que o suicídio é a pior saída para quem quer fugir de situação que acha impossível solucionar. Ninguém tem o direito de tentar impedir a ordem natural da vida. Quem desejar saber com profundidade as consequências de um suicídio pode ler a obra "Memórias de Um Suicida", ditada pelo espírito do famoso e importante escritor Camilo Castelo Branco, onde nos conta todo o seu sofrimento após suicidar-se, em 1890.

     Henri Numiers não acreditava que houvesse uma alma imortal animando seu saudável corpo  de   homem.   Para  ele,  existiam  apenas os  ossos,  as carnes, os nervos, artérias carreando o sangue necessário à vida. Era materialista. Por isso matou-se, assim tentando fugir à situação moral que o incomodava. Uma vez morrendo o homem, acreditava ele, a alma, se existisse, se extinguiria também com ele. Pensamento, amor, inteligência, sentimento, ação, honra, desonra, ódios, amarguras, decepções, tudo o que constitui o ser moral humano cria ele que se aniquilava no túmulo juntamente com o corpo. Dos belos sermões filosóficos de Rômulo e de Thom sobre os graves problemas do homem e sua alma imortal, feita à imagem e semelhança de Deus, Henri só guardava a lembrança da ansiedade com que esperava o fim para regressar a Numiers e rever Berthe. Contudo, o maior desapontamento o desgraçado moço colheu do seu ato de suicídio quando, ao primeiro amargor que a vida lhe apresentara, desejou furtar-se a ele, matando-se.

     Caíra de todo a noite e em Numiers e suas imediações pairava completo silêncio. Havia alguns meses que Henri desaparecera do mundo terreno, mas a desolação era porventura maior tanto em Numiers como em Stainesbourg e Fontaine. Pai Arnold não mais trabalhava, desinteressando-se da prosperidade da Quinta, e Marie continuava enferma. Era inverno. Contudo, naquela noite, o luar irradiava, emprestando àquele recanto da velha Flandres certa doçura de ambiente.
     Na aldeia de Numiers uns dormiam, outros velavam, alguns sofriam e choravam, e o silêncio presidia tudo.  
     De súbito, um grito agudo e forte repercutiu do vale do ribeiro estendendo-se pela aldeia. Na Quinta, que ficava próxima a esse vale, o grito fora também ouvido. Os cães uivaram tristemente, as ovelhas baliram, dolorosas, no aprisco, cochicharam os galináceos, assustados... E Marie e Arnold, que se achavam ainda despertos, entreolharam-se tomados de pavor e caíram em pranto. Haviam reconhecido naquele grito a voz do filho que morrera havia pouco.
     Rômulo, padre e médico, achava-se à cabeceira de Marie. Benzeu-se discretamente, dizendo consigo mesmo, comovido:

     - É a alma alucinada do meu pobre Henri...
     - Ouvistes, meu Padre? - interpelou pai Arnold.
     - Não, Arnold, nada ouvi. Que foi?
     - Um grito de desespero, a voz do meu rapaz...
     - É a tua impressão, meu pobre Arnold. Afasta da ideia esses pensamentos lúgubres...
     - Marie também ouviu, meu Padre, os cães uivaram, as ovelhas gemeram.
     - Ora, Marie está enferma e a febre excita-lhe os nervos e a imaginação. Os cães ladram sempre, as ovelhas choram a cada instante...
     Mas no íntimo, dolorosamente, ele repetiu:
     - Sim, é a alma alucinada do meu pobre Henri...

     No andar térreo, sozinho, diante da lareira acesa Thom também ouvira, compreendera e pusera-se a orar com fervor.
     Com efeito, Henri Numiers não morrera.
     Supondo aniquilar-se para sempre, ao atirar-se da montanha, ele conseguira aniquilar apenas o corpo carnal. Seu espírito, com a tenebrosa queda, como que desmaiara, anulara-se como se tudo ao derredor dele se extinguisse. A violência do gênero de morte que escolhera  traumatizara  o  seu  corpo  espiritual,  despedaçando-lhe  a harmonia das vibrações de tal forma que um século não bastaria para que elas retornassem ao ritmo normal necessário a um estado de vida satisfatório.    

     Passados que foram alguns dias, porém, Henri começou a voltar a si do longo desmaio, isto é, um estado de pesadelo angustioso sobreveio ao desmaio e ele começou a sentir a sensação da queda, as dores insuportáveis do seu corpo batendo nas pedras, partindo-se, esmagando-se. Estava cego, pois nada via, uma faixa negra e gelada envolvia-o, seus pensamentos eram um caos, não podia reunir as ideias, refletir, compreender o que se passava consigo, por que razão rolava, rolava da montanha, mas sem jamais atingir o solo. Somente podia refletir em que quisera morrer para fugir à tortura de viver sem a sua Berthe e que, para isso, saltara para o abismo num gesto pavoroso de completo louco. Um pavor alucinante invadira sua mente e ele pusera-se a gritar, a gritar desesperadamente, pedindo socorro. Fora um desses gritos que as três aldeias testemunharam e que, daquela noite em diante, começara a repetir-se periodicamente, pelas imediações. Por vezes, envolvido por aquele pesadelo, sentia-se no fundo do vale ao mesmo tempo em que rolava pela montanha, apavorava-se com a negra solidão que o rodeava, presenciava, sem saber como, o desespero de seus pais e as lágrimas dos amigos, chorava também, desesperado, e contemplava, apesar de cego para as demais ocorrências, os próprios despojos sangrentos, mutilados, sepultados sob um montão de terra e pedras. Nada compreendia senão que continuava a sofrer o desprezo da mulher amada e as humilhações daí consequentes, sofrimentos que, agora, reunidos ao martírio da inconcebível queda que nunca chegava ao fim, dele fazia um Espírito enlouquecido no mais alto grau que a mente humana poderá conceber.

     Tudo isso, porém, uma confusão atrocíssima para o desgraçado que a sofre, passava-se nele com dificuldade, em pequenos intervalos, pois, de quando em vez, ele perdia-se dentro de um caos, num penoso estado de colapso. E quando o infeliz esforçava compreender o que se passava seus pensamentos, traumatizados, negavam-se a atendê-lo e desapareciam naquela negridão interior que o confundia. Mas isso era apenas os vislumbres do despertar, o momento dramático e solene da ocasião em que o Espírito que abandona seu corpo carnal, valendo-se do suicídio, começa a se desenraizar dos liames magnéticos que o atavam à matéria. Esse desprendimento, lento, doloroso, que poderia durar meses e anos, valeria a Henri períodos infernais, indescritíveis ao entendimento humano. Sua impressão era de que estava atado por um ímã poderoso a um objeto do qual, no entanto, precisava desprender-se. Esse objeto encontrava-se ao sopé da montanha da qual ele rolava sem jamais parar, na escuridão do vale. 

Eram os seus despojos sangrentos, que ele via, apesar de cego, no fundo de uma cova, visão satânica da qual quisera fugir, mas que se agarrara a ele com um poder dominador, incapaz de ser repelida. Sobrevinham, em seguida, terríveis convulsões, fazendo-o estorcer-se como se seus nervos, absolutamente traumatizados, sofressem choques elétricos ao despenhar-se ele da montanha. Era como se ataques epilépticos o atingissem avassalando sua mente, suas vibrações, todas as moléculas do seu ser espiritual; era a sensação da queda sofrida pelo perispírito, estado depressor que o acompanharia até a reencarnação futura e que somente o Evangelho, revigorador de vibrações, reeducando-lhe a mente, poderia reencontrar. Nesse inconcebível estado traumático gritava de horror e procurava agarrar-se a qualquer coisa a fim de se deter na queda, e o desgraçado, apesar de tudo, através do pesadelo que o torturava, sente que continua sendo a personalidade Henri Numiers, que ele mesmo é que rola da montanha, que ele mesmo é que está estirado sob o montão de terra, apodrecido, corroído pelos vibriões, despojos de carnes sangrentas, negras, asquerosas, miseráveis, ele, que fora belo e forte, e que, a despeito disso, está vivo, sofredor e desgraçado, mas vivo pensante, sensível.

     Por vezes, sem saber como, vencido pelo cansaço e o desânimo, todos os atos de sua vida se lhe desenham no interior da consciência com uma minúcia de detalhes que o infeliz, já alucinado, converte-se em verdadeiro réprobo: seus modos de orgulhoso, sua indiferença pelos que o rodeiam em sua aldeia, o menosprezo a conselhos sensatos que recebia, a ingratidão para com os pais, sua arrogância de ateu, suas baixezas de ébrio e devasso, primeiro em Stainesbourg, ao perder Berthe, depois em Bruges; suas refregas com os moços da aldeia, todos marcados nas faces por sua faca, o suicídio de Franz Schmidt, a que dera causa, tudo o que constituíra o seu eu atuante na intimidade do lar e na sociedade agora desfilava diabolicamente em torno dele como cenas vivas que o enlouqueciam de mistura com as torturas que já o afligiam. Quer furtar-se à imposição do panorama de si mesmo, mas, em vão. A visão do que ele próprio foi e de como se conduziu na vida ali está, à sua frente, dentro dele, quais faixas de fogo que lhe devorassem o ser na desaprovação própria a que chamam arrependimento, remorso!

     Não podendo mais ou julgando-se exausto de tantas dores e sofrimentos, pensou em sua casa, saudoso do conforto desfrutado entre seus pais, da solidariedade de sua mãe, que ele tão mal soubera compreender e menos ainda agradecer. Num esforço supremo da própria vontade conseguiu locomover-se... E ei-lo à procura de socorro no lar paterno.
     Penetra naquela casa que o viu nascer e lhe dera os dias mais felizes que vivera. Diante de sua mãe, a quem encontra enferma e alquebrada, exclama cheio de queixas, julgando-se ouvido e compreendido:

     - Mãe, minha mãe! Tem compaixão de teu filho, que está ferido, enterrado vivo. Não, minha mãe, eu não estou morto, eu não morri, estou vivo, todos se enganaram a meu respeito. Olha em que estado me encontro: todo corroído por vermes, que me mordem e maltratam como lobos. Não posso sair de lá e sofro satanicamente, debaixo daquela terra pestilenta, que cheira a imundície. Não posso mais, tira-me de lá, tenho horror àquela caverna onde me prenderam, vejo fantasmas, que se riem do estado em que me encontro. Franz Schmidt está lá e culpa-me do que lhe aconteceu, tira-me de lá, minha mãe, eu estou vivo, estou vivo, estou vivo!
     Mas Marie, que nada via nem ouvia do que ele lhe dizia, não respondia, continuando a chorar, como sempre.    

     A angústia do pobre suicida recrudescia então e ele saía, desesperado, a procurar socorro noutra parte. Visitava o Presbitério, dirigia-se a Padre Rômulo e ao amigo Thom, suplicava auxílio, queixando-se sempre, e via que ambos o entendiam, mas, em vez de empunharem uma enxada e irem ao vale, a fim de desenterrá-lo, punham-se a orar banhados em lágrimas. E corria a aldeia rogando piedade e socorro a quantos encontrava. Ninguém lhe respondia, ninguém lhe dava atenção, mas alguns poucos se benziam e oravam.
     Entretanto, começou a correr o boato de que a alma de Henri sofria suplícios e que fora vista e reconhecida por alguns antigos amigos, e que ele mostrava-se horrorosamente feio: as vestes despedaçadas, rasgadas pela queda, o rosto esfolado e ensanguentado, as pernas quebradas, mutilado, imagem perfeita daqueles destroços que haviam sido sepultados no vale.

     Entrementes, o suicida não encontrava refrigério em parte alguma. Por toda parte onde tentasse o socorro alheio acompanhava-o as terríveis sensações que descrevemos. Por toda parte a sensação da queda que o alucinava. Por toda parte a sentir-se grilheta do próprio corpo que apodrecia no vale, a saudade da esposa, a humilhação do seu desprezo, o desespero de uma situação confusa, enigmática, atroz.
     Henri Numiers trazia o inferno dentro de si.
     Querendo furtar-se ao desgosto que, pela primeira vez o visitara, matou-se para dormir o eterno sono do esquecimento. Mas não encontrou o sono depois do suicídio. Não encontrou esquecimento. Encontrou apenas o seu próprio ser sofrendo novas fases de angústias criadas por ele próprio. Assim é o suicídio.


Espírito de Charles - Médium Yvonne A. Pereira  

Obra: O Cavaleiro de Numiers

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