Estais presente?
Sim. No dia da minha morte vos persegui com a
minha presença, e resististes às tentativas que fiz para escreverdes. As
palavras, que a meu respeito dissestes, deram ocasião a que vos reconhecesse, e
daí o desejo de me entreter convosco para vosso benefício.
Bom como éreis, por que sofrestes tanto?
Porque ao Senhor aprouve fazer-me sentir
duplamente por esse meio o preço da minha libertação, querendo ao mesmo tempo
em que na Terra progredisse o mais possível.
A ideia da morte causou-vos terror?
Tinha bastante fé em Deus para que tal não
sucedesse.
O desprendimento foi doloroso?
Não. Isso que denominais últimos momentos, nada
é. Eu apenas senti um rápido abalo, para encontrar-me logo feliz, inteiramente
desembaraçado da mísera carcaça.
E que sucedeu depois?
Tive o prazer de ver aproximarem-se inúmeros
amigos, notadamente os que tive a satisfação de ajudar, dando-me todos as
boas-vindas.
Que regiões habitais? Acaso algum planeta?
Tudo que não seja planeta constitui o que
chamais Espaço e é neste que permaneço. O homem não pode, contudo, calcular,
fazer uma ideia, sequer, do número de gradações desta imensidade. Que
infinidade de escalas nesta escada de Jacob que vai da Terra ao Céu, isto é, do
aviltamento da encarnação em mundo inferior, como esse, até à depuração
completa da alma! Ao lugar em que ora me encontro não se chega senão depois de
uma série enorme de provas, ou, por outra, de encarnações.
Logo, deveis ter tido multas existências?
Nem podia ser de outra maneira. Nada há
excepcional na ordem imutável do Universo, estabelecida por Deus. A recompensa
só pode vir depois da luta vencida: assim, se grande for aquela é que também
esta o foi e necessariamente. Mas a vida humana é tão curta que a luta apenas
se trava por intervalos, que são as diferentes e sucessivas encarnações. É
fácil, pois, concluir que, estando eu num dos graus elevados, o atingi depois
de uma série de combates, nos quais Deus me permitiu saísse vitorioso algumas
vezes.
Em que consiste a vossa felicidade?
Isso é mais difícil de vos fazer compreender.
Essa ventura que gozo é uma espécie de contentamento extremo de mim mesmo, não
pelos meus merecimentos - o que seria orgulho - e este é predicado de Espíritos
atrasados - mas contentamento como que saturado, imerso no amor de Deus, no
reconhecimento da sua infinita bondade. Em suma, é a alegria que nos infunde o
bem, podendo supor-se ter a seu arbítrio contribuído para o progresso de
outros, que se elevaram até o Criador. Ficamos como que identificados com esse
bem-estar, que é uma espécie de fusão do Espírito com a bondade divina. Temos o
dom de ver os Espíritos mais adiantados, de compreender-lhes a missão, de saber
que também nós a tanto chegaremos; no infinito incomensurável, entrevemos as
regiões em que rútilo esplende o fogo divino, a ponto de deslumbrar-nos,
mesmo através do véu que as envolve. Mas, que digo? Compreendeis as minhas
palavras? Acreditais ser esse fogo, a que me refiro, comparável ao Sol, por
exemplo? Não, nunca. É uma coisa indizível ao homem, uma vez que as palavras só
exprimem para ele coisas físicas ou metafísicas que conhece de memória ou
intuitivamente. Desde que o homem não pode guardar na memória o que
absolutamente desconhece como insinuar-se-lhe a percepção? Ficai, porém, ciente
de que é já uma grande ventura o pensar na possibilidade de progredir infinitamente.
Allan
Kardec. O céu e o inferno – segunda parte, capítulo 2.
Fonte: Correio Fraterno
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