Em bazófias
próprias de mentes perversas, diziam os soldados na rua que o Tiradentes
deveria ser morto de forma mais meritória, atado a um cavalo e marretassem-lhe
peito, pernas e pés, para que tivesse uma agonia lenta e dolorosa. Se algum
passante se atrevia a repostar1, ia logo curtir a cadeia. Os lusos atrevidos
tinham ainda medo daquele homem acabado fisicamente,
o alferes Xavier!
No oratório da
cadeia, panos pretos e cruz pendente do altar, só estavam naquele dia 20 de
abril de 1792 o Tiradentes, uns guardas, e dois frades, que o tentavam consolar.
A um dado momento, pensando na sua vida de sacrifício e luta, embora contente
por só ele ser o condenado à pena máxima, ainda repostou ao padre, com mágoa e
ironia simples:
- A corda sempre
rebenta pelo lado mais fraco!
Como se enganava o
alferes. Nenhum de nós poderia ser mais forte do que ele naquele instante!
De madrugada, às
quatro horas, após uma noite sem dormir, em pensamentos cheios de oração e dor,
chegou-se ao alferes o barbeiro. Vinha cumprir o de praxe: raspou-lhe os
cabelos e a barba. Em seguida, um meirinho tirou-lhe as roupas e fê-lo vestir a
serapilheira2 branca, a alva dos condenados, cujas mangas eram cosidas nas extremidades,
com cordas que se amarravam em nó. Foi ouvido, então, em confissão, por Frei
Raimundo Penaforte, que lhe fez uma missa e ministrou-lhe a extrema-unção.
A Tiradentes nada
daquilo parecia real. Talvez que Deus o condenasse, porque os homens haviam
atingido tal fim, porque ele se houvera como voluntário para cortar a cabeça ao
governador! - pensava cansado. No entanto, sabia que a morte não era o fim de
tudo! Lembrava-se da lenda maçônica segundo a qual o herói vira estrela no céu!
Sorria tristemente. Repostava ao frade por monossílabos!
Já raiava o dia 21 de
abril de 1792, um sábado de sol esplêndido, sendo Portugal regido por D. Maria
I, o vice-rei Dom Luís de Castro, conde de Resende. Logo mais seria executada a
sentença. Assistiriam à execução os mesmos “marotos”, palavra ofensiva que os
lusos detestavam, e que havia custado ao Victoriano Veloso os açoites ao redor
da forca e a caminho da cadeia, o Silvério, o Parada e Souza, o Manitti, o Basílio
Brito Malheiros. Dos traidores só o Pamplona não foi contemplado pelos “serviços”
prestados à sua Real Soberana!
Vários corpos de
Infantaria, um de Artilharia e um Esquadrão de Cavalaria da Guarda dos
vice-reis, com duas companhias, se apressavam para guarnecer as ruas e a execução.
A serviço da segurança do vice-rei e sua magistratura três batalhões de granadeiros...
Pela manhã, logo cedo
estavam todos com seus fardamentos de gala, os cavalos com fitas cor-de-rosa
nas crinas e mais nas espingardas e baionetas dos soldados. Os arreios de prata
dos maiorais haviam sido polidos e brilhavam ao sol. As ruas do Piolho, da
Cadeia, da Barreira de Santo Antônio e do largo de Lampadosa, onde fora erguida
a forca descomunal, cujas traves se encontram no Museu da Inconfidência, foram
visitadas por soldados. Deveriam guarnecer as janelas de colchas adamascadas,
festões, rendas, para enfeitar aquela demonstração de força. Para espanto dos
promotores da execução o povo acorreu às ruas. Ia a dar espórtulas aos padres
que a pediam, segundo o costume, para as missas ao condenado. Era uma última
homenagem, covarde embora, daqueles por quem o Tiradentes se propusera a lutar!
O coronel José da Silva Santos, comandante do Regimento da Artilharia do Rio de
janeiro, teria que guarnecer a forca, junto com os regimentos de Bragança e
Moura, primeiro e segundo batalhão dos granadeiros, sob o comando do coronel
José Vitorino Coimbra. Ironia cruel! Estes homens eram companheiros nossos, e
inspirados pelo Plano Espiritual, sob o cego olhar das autoridades presentes
guarneceram a forca, formando-se num gigantesco e humano triângulo, o mesmo
símbolo da bandeira Inconfidente!
Às nove horas da
manhã abriu-se o portão da cadeia, e com os padres da Irmandade da Misericórdia,
que iam a rezar a prece de S. Atanásio, apareceu diante dos primeiros
assistentes Tiradentes, vestindo a alva, com as mãos amarradas por grossas cordas.
Dirigiu-se a ele o Galé3 Jerônimo Capitania, escolhido para a execução da sentença!
Pediu ao Tiradentes que o perdoasse pelo que ia fazer, que a isto era obrigado.
Era costume fazê-lo,
como a se aliviar do que tinha que cumprir.
Tiradentes ajoelhou-se
diante do negro e beijou-lhe as mãos, repostando:
- Assim também o Meu
Senhor morreu por meus pecados!
Jerônimo jamais
esqueceria enquanto vivesse aquele condenado, que o haveria de ajudar, desde
então. Curvada a cabeça do alferes, passou-lhe o baraço4 ao pescoço, seguindo à
frente a puxá-lo. Nas mãos, os padres lhe puseram um crucifixo de dois palmos,
o qual Tiradentes passou a olhar, para não mais pensar em ninguém e pedindo ao
Cristo o ajudasse no derradeiro instante.
As cornetas soaram e a
Companhia da Cavalaria abriu o séquito fúnebre, seguida de três meirinhos, que
iam badalando sinos e repetindo a sentença para ciência dos assistentes. Várias
Irmandades seguiam o cortejo: a do Rosário, dos Terceiros de São Francisco, do
Santíssimo Sacramento, da Sé dos Beneditinos e Carmelitas, que havia recolhido
minha Dalva, das Almas do Purgatório. Atrás Silva Xavier, o Tiradentes, seguido
pelos irmãos de Santo Antônio e Santa Casa de Misericórdia. A alçada régia estava
representada pelo escrivão, ouvidores, juízes de fora.
No prédio que me
acolhera, bem como nos demais, ouvimos o toque das cornetas e sabíamos o que
representava.
O trajeto era longo
para ser feito a pé por um condenado. Tiradentes era provado por última vez. E
seguiu, tendo por duas vezes olhado os céus. Alguns curiosos tiveram pena.
Mulheres choravam e afastavam-se do lugar.
Assim que foram
chegando os padres, os meirinhos e todos perto da Igreja de Lampadosa, ouviram
de dentro um coral de vozes. Era à conta do amigo do Tejuco, o Mesquita Lobo,
cantado por um coral de mulatos, o Domenica Palmarum. Tiradentes entendeu a
mensagem muda. Logo mais viria o seu sacrifício, como o de Jesus, pelos seus
irmãos, só que, por diferente havia ele sonhado com um reino neste Brasil, provera
Deus lhe reservasse um lugar no outro Reino. Olhou para dentro, parando por uns
instantes. No altar viu acesas velas. Formavam um perfeito triângulo. Sinal
que, se ele morreria breve, as ideias de liberdade permaneceriam. Atrás de uma
coluna julgou ver uma mulher e uma criança. Talvez Eugênia. O sol forte o
impedia de ver direito na Igreja escura. Melhor não fosse ela, pobre mulher -
pensou.
Seguiu adiante. Ao
seu lado, acompanhando-o no derradeiro momento as entidades amigas5
ministravam-lhe conforto. Uma paz estranha o envolvia a poucos metros da forca
que avistou adiante. Um entorpecimento, e uma alegria nova no coração. Era
nisto a morte? A liberdade?
Diante da escada
parou um instante. Frei Penaforte ajudou-o a galgar os vinte e quatro degraus.
Diante de si viu a multidão e os guardas em seus uniformes. Não! Não se
enganava! Era novamente o triângulo6 que tinha diante de si. Olhou para as
autoridades. Seu pensamento se elevou aos céus, enquanto se ouvia um discurso
encomendado ao padre, para lição à multidão presente.
- Seja breve, padre -
pediu Tiradentes, baixando a voz.
O padre parou um
instante. Tiradentes pensou que já não lhe poderiam negar falasse àquele povo
porque iria morrer por aquele modo por ele. Com uma coragem, abriu a boca para
falar-lhes. A um sinal, o carrasco puxou a corda, atando-a a trave. Não lhe
permitiriam aquele último recurso!
Frei José Maria do
Desterro começou sua fala, condenando aqueles que fugiam à desobediência dos
reis e seus ministros! Aproveitou para falar da sentença aos outros condenados,
com o que pudesse fazer saber a todos os que ainda não soubessem, devido à
amizade que tinha a alguns acusados. Por três vezes Tiradentes lhe pediu que
terminasse a prédica. O Sol estava a pino. Pediu água e lhe deram, mas como que
se lembrasse de pedido semelhante a um outro condenado à morte, a quem pedia
coragem e perdão para os algozes, mal a pôde beber. Frei José começou a orar o
Credo dos apóstolos, lentamente. Para que também se pusesse, por fim, pronto
para aquele instante Tiradentes repetiu alto, para que as pessoas próximas ouvissem,
palavra por palavra. Todos estavam magnetizados por aquele homem magro e
abatido, cujo olhar espelhava uma força e resignação divinas. Amparado por
forças invisíveis ao populacho e à tropa, seu espírito, meio liberto do corpo,
pairava acima do solo, ligado por tênues fios ao corpo maltratado,
impulsionando a fala. Tirou-lhe o carrasco o crucifixo das mãos. Quando a
oração terminasse, teria que cumprir a sentença. Para que a multidão não visse
a fisionomia do réu e este a de todos, amarrou-lhe aos olhos uma tira de Bretanha
preta.
Tiradentes, com os
olhos mortais velados, começou a ver o triângulo da guarda radioso em luz, como
se um Sol o centrasse!
- Delírios de
condenado? - pensou e clamou em espírito: Jesus! Jesus! Jesus!
Descendo os últimos
degraus Pe. José terminava a prece encomendada: “Na vida eterna!” Como se
obedecendo à senha, Jerônimo puxou violentamente a corda, suspendendo o alferes
no ar. Estertores convulsos sacudiam o corpo. Eram onze horas e vinte minutos
do dia 21 de abril de 1792. Pulando sobre os ombros do condenado, balouçado
pelo ar, Jerônimo Capitania apressava a morte do Tiradentes.
Vendo o triângulo de
gentes alegres a saudá-lo, sentiu o alferes uma dor funda no pescoço e a
sufocação. Seu corpo estava levantado, suspenso, como que desmaiava, e, no
entanto, ouvia um coral cantando, cantando o Te Deum. O centro solar do triângulo
tomava vida: Era o Cristo a lhe estender os braços. Queria falar, correr ao seu
encontro, mas não tinha forças. Amparavam-no de cada lado Felipe7 e o romano Lício.
Então a morte era assim? E de onde partiam aqueles longínquos ruídos?
Ouvia o Tiradentes,
bem abafado, no outro Plano da Vida, o rufar dos tambores que finalizava sua
execução e abafava qualquer voz de horror que o povo pudesse erguer.
Também nós o ouvimos
e, sabendo-lhe a causa, choramos amargamente.
( Espírito Tomás Antônio Gonzaga - Médium:
Marilusa Moreira Vasconcellos - Obra: Confidências de um Inconfidente). EDITORA
RADHU
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