terça-feira, 22 de abril de 2014

TIRADENTES - ÚLTIMOS MOMENTOS


Em bazófias próprias de mentes perversas, diziam os soldados na rua que o Tiradentes deveria ser morto de forma mais meritória, atado a um cavalo e marretassem-lhe peito, pernas e pés, para que tivesse uma agonia lenta e dolorosa. Se algum passante se atrevia a repostar1, ia logo curtir a cadeia. Os lusos atrevidos tinham ainda medo daquele homem acabado fisicamente, o alferes Xavier!

No oratório da cadeia, panos pretos e cruz pendente do altar, só estavam naquele dia 20 de abril de 1792 o Tiradentes, uns guardas, e dois frades, que o tentavam consolar. A um dado momento, pensando na sua vida de sacrifício e luta, embora contente por só ele ser o condenado à pena máxima, ainda repostou ao padre, com mágoa e ironia simples:
- A corda sempre rebenta pelo lado mais fraco!
Como se enganava o alferes. Nenhum de nós poderia ser mais forte do que ele naquele instante!
De madrugada, às quatro horas, após uma noite sem dormir, em pensamentos cheios de oração e dor, chegou-se ao alferes o barbeiro. Vinha cumprir o de praxe: raspou-lhe os cabelos e a barba. Em seguida, um meirinho tirou-lhe as roupas e fê-lo vestir a serapilheira2 branca, a alva dos condenados, cujas mangas eram cosidas nas extremidades, com cordas que se amarravam em nó. Foi ouvido, então, em confissão, por Frei Raimundo Penaforte, que lhe fez uma missa e ministrou-lhe a extrema-unção.
A Tiradentes nada daquilo parecia real. Talvez que Deus o condenasse, porque os homens haviam atingido tal fim, porque ele se houvera como voluntário para cortar a cabeça ao governador! - pensava cansado. No entanto, sabia que a morte não era o fim de tudo! Lembrava-se da lenda maçônica segundo a qual o herói vira estrela no céu! Sorria tristemente. Repostava ao frade por monossílabos!
Já raiava o dia 21 de abril de 1792, um sábado de sol esplêndido, sendo Portugal regido por D. Maria I, o vice-rei Dom Luís de Castro, conde de Resende. Logo mais seria executada a sentença. Assistiriam à execução os mesmos “marotos”, palavra ofensiva que os lusos detestavam, e que havia custado ao Victoriano Veloso os açoites ao redor da forca e a caminho da cadeia, o Silvério, o Parada e Souza, o Manitti, o Basílio Brito Malheiros. Dos traidores só o Pamplona não foi contemplado pelos “serviços” prestados à sua Real Soberana!
Vários corpos de Infantaria, um de Artilharia e um Esquadrão de Cavalaria da Guarda dos vice-reis, com duas companhias, se apressavam para guarnecer as ruas e a execução. A serviço da segurança do vice-rei e sua magistratura três batalhões de granadeiros...
Pela manhã, logo cedo estavam todos com seus fardamentos de gala, os cavalos com fitas cor-de-rosa nas crinas e mais nas espingardas e baionetas dos soldados. Os arreios de prata dos maiorais haviam sido polidos e brilhavam ao sol. As ruas do Piolho, da Cadeia, da Barreira de Santo Antônio e do largo de Lampadosa, onde fora erguida a forca descomunal, cujas traves se encontram no Museu da Inconfidência, foram visitadas por soldados. Deveriam guarnecer as janelas de colchas adamascadas, festões, rendas, para enfeitar aquela demonstração de força. Para espanto dos promotores da execução o povo acorreu às ruas. Ia a dar espórtulas aos padres que a pediam, segundo o costume, para as missas ao condenado. Era uma última homenagem, covarde embora, daqueles por quem o Tiradentes se propusera a lutar! O coronel José da Silva Santos, comandante do Regimento da Artilharia do Rio de janeiro, teria que guarnecer a forca, junto com os regimentos de Bragança e Moura, primeiro e segundo batalhão dos granadeiros, sob o comando do coronel José Vitorino Coimbra. Ironia cruel! Estes homens eram companheiros nossos, e inspirados pelo Plano Espiritual, sob o cego olhar das autoridades presentes guarneceram a forca, formando-se num gigantesco e humano triângulo, o mesmo símbolo da bandeira Inconfidente!

Às nove horas da manhã abriu-se o portão da cadeia, e com os padres da Irmandade da Misericórdia, que iam a rezar a prece de S. Atanásio, apareceu diante dos primeiros assistentes Tiradentes, vestindo a alva, com as mãos amarradas por grossas cordas. Dirigiu-se a ele o Galé3 Jerônimo Capitania, escolhido para a execução da sentença! Pediu ao Tiradentes que o perdoasse pelo que ia fazer, que a isto era obrigado.
Era costume fazê-lo, como a se aliviar do que tinha que cumprir.
Tiradentes ajoelhou-se diante do negro e beijou-lhe as mãos, repostando:
- Assim também o Meu Senhor morreu por meus pecados!
Jerônimo jamais esqueceria enquanto vivesse aquele condenado, que o haveria de ajudar, desde então. Curvada a cabeça do alferes, passou-lhe o baraço4 ao pescoço, seguindo à frente a puxá-lo. Nas mãos, os padres lhe puseram um crucifixo de dois palmos, o qual Tiradentes passou a olhar, para não mais pensar em ninguém e pedindo ao Cristo o ajudasse no derradeiro instante.
As cornetas soaram e a Companhia da Cavalaria abriu o séquito fúnebre, seguida de três meirinhos, que iam badalando sinos e repetindo a sentença para ciência dos assistentes. Várias Irmandades seguiam o cortejo: a do Rosário, dos Terceiros de São Francisco, do Santíssimo Sacramento, da Sé dos Beneditinos e Carmelitas, que havia recolhido minha Dalva, das Almas do Purgatório. Atrás Silva Xavier, o Tiradentes, seguido pelos irmãos de Santo Antônio e Santa Casa de Misericórdia. A alçada régia estava representada pelo escrivão, ouvidores, juízes de fora.
No prédio que me acolhera, bem como nos demais, ouvimos o toque das cornetas e sabíamos o que representava.
O trajeto era longo para ser feito a pé por um condenado. Tiradentes era provado por última vez. E seguiu, tendo por duas vezes olhado os céus. Alguns curiosos tiveram pena. Mulheres choravam e afastavam-se do lugar.
Assim que foram chegando os padres, os meirinhos e todos perto da Igreja de Lampadosa, ouviram de dentro um coral de vozes. Era à conta do amigo do Tejuco, o Mesquita Lobo, cantado por um coral de mulatos, o Domenica Palmarum. Tiradentes entendeu a mensagem muda. Logo mais viria o seu sacrifício, como o de Jesus, pelos seus irmãos, só que, por diferente havia ele sonhado com um reino neste Brasil, provera Deus lhe reservasse um lugar no outro Reino. Olhou para dentro, parando por uns instantes. No altar viu acesas velas. Formavam um perfeito triângulo. Sinal que, se ele morreria breve, as ideias de liberdade permaneceriam. Atrás de uma coluna julgou ver uma mulher e uma criança. Talvez Eugênia. O sol forte o impedia de ver direito na Igreja escura. Melhor não fosse ela, pobre mulher - pensou.
Seguiu adiante. Ao seu lado, acompanhando-o no derradeiro momento as entidades amigas5 ministravam-lhe conforto. Uma paz estranha o envolvia a poucos metros da forca que avistou adiante. Um entorpecimento, e uma alegria nova no coração. Era nisto a morte? A liberdade?
Diante da escada parou um instante. Frei Penaforte ajudou-o a galgar os vinte e quatro degraus. Diante de si viu a multidão e os guardas em seus uniformes. Não! Não se enganava! Era novamente o triângulo6 que tinha diante de si. Olhou para as autoridades. Seu pensamento se elevou aos céus, enquanto se ouvia um discurso encomendado ao padre, para lição à multidão presente.
- Seja breve, padre - pediu Tiradentes, baixando a voz.
O padre parou um instante. Tiradentes pensou que já não lhe poderiam negar falasse àquele povo porque iria morrer por aquele modo por ele. Com uma coragem, abriu a boca para falar-lhes. A um sinal, o carrasco puxou a corda, atando-a a trave. Não lhe permitiriam aquele último recurso!
Frei José Maria do Desterro começou sua fala, condenando aqueles que fugiam à desobediência dos reis e seus ministros! Aproveitou para falar da sentença aos outros condenados, com o que pudesse fazer saber a todos os que ainda não soubessem, devido à amizade que tinha a alguns acusados. Por três vezes Tiradentes lhe pediu que terminasse a prédica. O Sol estava a pino. Pediu água e lhe deram, mas como que se lembrasse de pedido semelhante a um outro condenado à morte, a quem pedia coragem e perdão para os algozes, mal a pôde beber. Frei José começou a orar o Credo dos apóstolos, lentamente. Para que também se pusesse, por fim, pronto para aquele instante Tiradentes repetiu alto, para que as pessoas próximas ouvissem, palavra por palavra. Todos estavam magnetizados por aquele homem magro e abatido, cujo olhar espelhava uma força e resignação divinas. Amparado por forças invisíveis ao populacho e à tropa, seu espírito, meio liberto do corpo, pairava acima do solo, ligado por tênues fios ao corpo maltratado, impulsionando a fala. Tirou-lhe o carrasco o crucifixo das mãos. Quando a oração terminasse, teria que cumprir a sentença. Para que a multidão não visse a fisionomia do réu e este a de todos, amarrou-lhe aos olhos uma tira de Bretanha preta.
Tiradentes, com os olhos mortais velados, começou a ver o triângulo da guarda radioso em luz, como se um Sol o centrasse!
- Delírios de condenado? - pensou e clamou em espírito: Jesus! Jesus! Jesus!
Descendo os últimos degraus Pe. José terminava a prece encomendada: “Na vida eterna!” Como se obedecendo à senha, Jerônimo puxou violentamente a corda, suspendendo o alferes no ar. Estertores convulsos sacudiam o corpo. Eram onze horas e vinte minutos do dia 21 de abril de 1792. Pulando sobre os ombros do condenado, balouçado pelo ar, Jerônimo Capitania apressava a morte do Tiradentes.
Vendo o triângulo de gentes alegres a saudá-lo, sentiu o alferes uma dor funda no pescoço e a sufocação. Seu corpo estava levantado, suspenso, como que desmaiava, e, no entanto, ouvia um coral cantando, cantando o Te Deum. O centro solar do triângulo tomava vida: Era o Cristo a lhe estender os braços. Queria falar, correr ao seu encontro, mas não tinha forças. Amparavam-no de cada lado Felipe7 e o romano Lício. Então a morte era assim? E de onde partiam aqueles longínquos ruídos?
Ouvia o Tiradentes, bem abafado, no outro Plano da Vida, o rufar dos tambores que finalizava sua execução e abafava qualquer voz de horror que o povo pudesse erguer.
Também nós o ouvimos e, sabendo-lhe a causa, choramos amargamente.

( Espírito Tomás Antônio Gonzaga - Médium: Marilusa Moreira Vasconcellos - Obra: Confidências de um Inconfidente). EDITORA RADHU

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