Algumas
vezes eu representei cenas de perdas de entes queridos em novelas. No dia 17 de
novembro de 1995, no velório de minha filha Ana Luísa, nascida em São Paulo no
dia 10 de dezembro de 1976, eu não queria acreditar que estivesse vivendo
aquilo de verdade. No dia seguinte, saí para comprar alguns presentes de Natal.
Afinal, meus outros seis filhos ainda estavam ali e precisavam da mãe. Mas eu
parecia um zumbi. Numa loja, me senti mal. Tontura, fraqueza, parecia que meu
peito iria explodir que eu não iria aguentar tanta dor. Pedi à vendedora que me
deixasse sentar um pouco. Eu estava quase sufocando, as lágrimas queriam saltar
de meus olhos. Mas eu não queria chorar. Queria esconder minha dor, fazer de
conta que aquilo não havia acontecido comigo. Bebi água, respirei fundo e saí
ainda zonza. Eu sempre acreditei que iria terminar de criar minha filha, como
todos os outros. Que iria vê-la formar-se em veterinária. Vê-la casada, com
filhos. Achava que teria sempre a Aninha ao meu lado. Um dia, ela me contou que
quando era pequena e eu saía pra trabalhar, ela sentia medo de que eu não
voltasse. Por isso ficava sempre na porta de casa me olhando até eu sumir de
sua vista. Por isso vivia grudada em mim. Imagino que ela já pressentia ainda
criança, que iríamos nos separar cedo. Só que foi ela a ir embora. Foi ela que
saiu e não voltou mais. Foi ela que me deixou com a sua saudade. Para amenizar
a falta, o vazio que ela deixou, eu ficava horas revendo os vídeos mais
recentes com suas imagens. Nossas viagens, festas de aniversários, a formatura
da irmã, seu jeitinho lindo tão meu conhecido de sentir vergonha. Ela com o
primeiro e único namorado. O gesto característico de arrumar os cabelos. A sua
primeira apresentação de piano. Nesse vídeo então, eu ficava namorando suas
mãos de dedos longos e finos. Até hoje eu me lembro de cada detalhe das mãos da
Aninha. Assim como me lembro de cada detalhe de seus pés, do seu rosto... Dali
pra frente, o que mais me chocava e surpreendia era que todo o resto do mundo
continuava igual. Como se nada tivesse acontecido: o sol nascia e se punha
todos os dias, as pessoas andavam pelas ruas. O mesmo movimento, barulho. O
mundo continuava a girar. Tudo, tudo igual. Só na minha casa, na minha família,
dentro de mim, é que nada mais voltaria a ser como antes. Faltava minha filha,
Ana Luísa! Eu passava, quase diariamente, nos lugares comuns: o colégio
Imaculada Conceição, em Botafogo. Cinema, lanchonete, restaurante, o metrô,
onde tantas e tantas vezes viajamos juntas. A loja das comprinhas, o shopping,
o parquinho, o clube onde fazia natação. A praia de Botafogo onde ela foi
atropelada, o hospital Miguel Couto, onde passamos as horas mais angustiosas de
nossas vidas. O cemitério São João Batista, onde repousam seus restos mortais.
Até hoje cada um desses lugares me lembra alguma coisa de minha filha. Até hoje
guardo as lembranças de seus abraços, seus chamegos, o cheirinho da sua pele, o
calor, seu carinho e aconchego. Ana vivia literalmente pendurada em mim. Já
grandona, maior que eu, mas sempre como se fosse meu nenê pedindo colo.
Saudade. Saudade. Saudade, minha Aninha. Não fosse a minha fé e a convicção de
que a vida não termina com a morte, não fossem os outros filhos que ainda precisavam
de mim, acho que teria pirado. Além da família, o trabalho, a terapia e o estudo
da doutrina espírita me deram forças para superar a separação e a falta da Ana
Luísa. Sou e serei eternamente grata ao meu Pai do Céu, porque fui agraciada
com muitos sinais de que a separação é apenas temporária. Alguns dias após sua
passagem entrei em seu quartinho que ficou inundado pelo cheiro de rosas.
Instintivamente fui olhar pela janela. Naturalmente o cheiro não vinha de fora.
O perfume intenso era só ali dentro. Um mês depois, no grupo que eu frequentava
no Centro Seara Fraterna, minha filha se manifestou. Ainda meio confusa pela mudança
abrupta e repentina, mas já consciente de sua passagem. Naquela noite, o buraco
no meu peito que parecia uma ferida sangrando, mudou de aspecto. Continuava a
doer, mas a certeza de que minha filha continuava e continua viva em alguma
outra dimensão me trouxe uma nova perspectiva. A de que eu poderia chorar pela
sua ausência, nunca pelo seu fim. Dalí pra frente, algumas vezes vi, em outras
pressenti, sua essência ao meu lado. No decorrer desses doze anos, recebi, por
acréscimo de misericórdia, um bom número de mensagens dela. Uma das últimas foi
através de um médium reconhecido, que foi fazer uma palestra num evento que eu
apresentava. Sem que eu esperasse ou solicitasse, ele disse que via uma jovem
ao meu lado – me descreveu exatamente minha filha - e que ela me apontava para
ele dizendo: é esta aqui, ó. Esta é que é a minha mãe. Quando me sentei, ele
disse que ela sentou-se no meu colo. Entre as várias coisas no recado que me
mandou, encerrou dizendo que as violetas (enceno a peça “Violetas na janela” há
11 anos) que ela cultiva onde se encontra, não serão colocadas na janela, e
sim, serão usadas para fazer um tapete de flores para eu pisar quando chegar
lá.
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